19.12.24

James e o dialeto do Mississípi

O problema não está em James, esse erudito secreto e algo esquivo, que parece aceitar de antemão a minha dificuldade em decifrá-lo. Não, o problema está no adolescente que fui, aquele que, aos quinze anos, leu “As Aventuras de Huckleberry Finn” com a despreocupação de quem atravessa um campo de girassóis: sem mapa, sem pressa, e com a certeza de que nenhum dialeto podia ser mais complicado do que regressar a casa à hora estipulada pela autoridade materna. Huck, nas mãos de Mark Twain, era um guia benevolente, sem pretensões pedagógicas, que me deixava correr descalço pelo Mississípi, ignorando cada “y’all” e “ain’t” como se fossem apenas música de fundo — até porque estavam traduzidas nalguma improvável alternativa portuguesa.
Já o “James” de Percival Everett, implacável, exige mais. Exige que eu pare, que leia em voz alta, que procure no YouTube tutoriais de sotaques sulistas para compreender diálogos que me soam a poesia críptica. Onde Huck sorria das minhas falhas, James levanta uma sobrancelha crítica. Talvez seja isso que me atormenta: não o dialeto em si, mas o espelho que Everett segura, mostrando-me que, afinal, já não sou o leitor adolescente que flutuava pelo Mississípi, mas um adulto que tropeça em cada frase como quem tenta dançar sapateado descalço. Entre o Mississípi de Twain e o de Everett, descubro que há duas formas de viajar: uma é deixar-me levar pela corrente, outra é enfrentar os redemoinhos do idioma — e, com sorte, não me afogar em cada frase.

4 comentários:

  1. Este livro está muito bem cotado no Goodreads.
    Gostou do Don Quijote de La Mancha?
    Boa tarde Xilre.

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    1. Don Quijote de La Mancha é, sem dúvida, uma experiência literária inesgotável, onde a ironia e a profundidade convivem num equilíbrio raro. Já James desafia-nos com outra textura: mais áspera, mais densa, mas igualmente rica. É uma daquelas leituras que exigem entrega total — e retribuem à altura.
      Boa noite Joaquim

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  2. Temos uma experiência quase idêntica.
    Li “As Aventuras de Huckleberry Finn” em português ainda menina e moça.
    Li “James” na tradução alemã há ainda muito pouco tempo.
    Não me arrependi de me afogar em cada frase.

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    1. Há algo de fascinante na maneira como as versões redesenham o percurso de uma leitura. No original, James obrigou-me a enfrentar cada frase como quem escala uma montanha: sem atalhos, mas com vistas deslumbrantes a cada pausa. Talvez seja isso que as grandes obras fazem connosco — transformam-nos em navegadores pacientes, seja em alemão, inglês ou português, para no fim nos deixarem à deriva numa riqueza que já não queremos abandonar.

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