16.12.24

Os coentros e o drama do prato perfeito

Há quem diga que os coentros são a alma da cozinha mediterrânica; outros, num exagero digno de tragédia grega, chamam-lhes ervas subversivas. Mas quando o assunto é uma honesta raia com batata cozida, esta erva aromática não é apenas um detalhe botânico — é o argumento principal, o golpe de génio que separa uma iguaria respeitável de um prato sem alma.
Imagine-se a cena: a raia, em toda a sua modéstia gelatinosa, repousa no centro da travessa. Ao lado, as batatas, humildes operárias da mesa portuguesa, já cozidas, descascadas e sem grandes ambições na vida. Tudo parece bem. Até que alguém, numa ousadia inexplicável, decide ignorar o ramo de coentros. O resultado? Um prato que evoca mais um vazio clínico do que a generosidade de uma mesa familiar.
Leitora, esta erva rebelde não é um enfeite. Não está ali para fazer número. É o poeta maldito da travessa, o Rimbaud da cozinha. Na sua frescura, traz o campo, o verde que corta o peso do mar e do amido, o contraste que transforma um alimento humilde numa experiência transcendental.
E quem a despreza? Há sempre um comensal na mesa que reclama: «Coentros? Nem pensar, parecem-me sempre um erro de jardinagem no prato.» Pois que fique com a refeição a saber a nada, mergulhado num tédio culinário onde nem o azeite tem vontade de brilhar. Esses são os mesmos que acham que a vida é melhor sem riscos, sem emoção, e que pão com manteiga já é aventura suficiente para o pequeno-almoço.
Portanto, na próxima vez que vir alguém hesitar diante de um molho de coentros, lembre-se: é o mesmo que hesitar perante a felicidade. Sem eles, a raia é apenas um peixe à deriva na travessa; com eles, é uma ode ao mar e à terra num só golpe.
Esta erva aromática não divide opiniões. Divide mundos. E no meu, onde a raia é rainha, o reino é deles.

4 comentários:

  1. Não sei se gosto de raia, mas se for o peixe branco que imagino, gostarei certamente; os poucos peixes que repudio são sardinhas, sardas e um crivado de espinhas e que não serve senão para dar sabor a caldeiradas e nem o nome recordo. Mas as partes gelatinosas da raia enojam-me um bocadinho só de ouvir falar:).
    Quanto aos coentros: há quem não goste, o sabor é de facto intenso. Como boa alentejana não os dispenso; mas no Alentejo ninguém obriga ninguém. Podem colocar-se apenas nos pratos ou saladas de quem gosta. Por aí não vai o gato às filhoses.
    Está a tornar-se extenso, Xilre. Pois muito folgo com essa extensão que não perde qualidade.
    O que eu queria comer pão com manteiga(!), uma torrada matinal, vá. Diz o Xilre que é monotonia. Quando lha tirem vai ver o quanto gostava dela (da monotonia).
    Queira gozar de uma boa noite

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    1. Ah, a torrada matinal... uma monotonia que, na sua ausência, se eleva a saudade. Mas não há nada de banal num pão bem torrado, sobretudo se a manteiga for generosa e se fundir na crosta. Quanto à raia, diria que é um gosto adquirido; o seu charme está no inesperado — até na textura que, confesso, não é para todos. E os coentros, esses, serão sempre uma escolha. Talvez no Alentejo se viva melhor essa liberdade; aqui, na minha mesa, são imposição poética.

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  2. Também sou 100% a favor de coentros:) Mas dizem que é o que divide o país a meio.

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    1. Os coentros dividem, sim, mas a meio é como as boas discussões: ninguém sai ileso, e a verdade, essa, talvez esteja escondida num prato aromático que ambos possam partilhar.

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