É curioso como a expressão “zona de conforto” se tornou a máxima moral da nossa era, uma espécie de mantra motivacional reciclado em palestras, livros de autoajuda e, claro, nas redes sociais, onde aparece invariavelmente acompanhado de fotografias de montanhas ou praias desertas. Quem a proclama fá-lo com uma confiança desconcertante, como se jamais tivesse conhecido a lassidão de um sofá num domingo chuvoso ou a sedução de uma rotina bem calibrada. O paradoxo reside no facto de que os seus maiores defensores costumam anunciá-la de poltronas lustrosas ou escritórios climatizados, enquanto incentivam os outros a trocarem caminhos balizados por terrenos inóspitos.
A ironia é particularmente comovente quando observamos que, na maioria dos casos, essas vozes são emanadas de uma posição invejavelmente estável — emocional, financeira ou geográfica. Dizer a um público menos afortunado para abandonar a sua “zona de conforto” soa menos a conselho altruísta e mais a uma tentativa de exportar um incómodo inexistente. Afinal, não é difícil pregar o desconforto como virtude quando se tem um colchão de penas metafórico (ou literal) à espera. Aqui, o conceito não é apenas uma contradição: é um privilégio mal disfarçado sob o manto de uma suposta coragem.
Sejamos francos: o conforto não é o inimigo, mas sim o bode expiatório. Na ânsia de tornarem a inquietação produtiva, os promotores de caminhos pedregosos para os restantes, esquecem que algumas das melhores ideias — e das mais perigosas, para quem vende certezas — surgem precisamente no aconchego do ócio. Talvez devêssemos desafiar quem usa a dita “zona de conforto” de outrem como estandarte de moralidade a experimentar o desconforto genuíno de se calarem, uma vez que sair desse hábito discursivo seria, sem dúvida, uma verdadeira aventura.
19.1.25
14.1.25
Pequeno tratado sobre o retrocesso civilizacional
Há uns dias, dei por mim a questionar as virtudes da vida moderna, talvez porque o meu telefone esperto me alertou para uma reunião que esqueci, enquanto tentava carregar a bateria a cinco por cento com um cabo que só funciona em posição de yoga. Foi nesse momento de epifania – ou cansaço extremo – que decidi fazer o impensável: regredir. Comecei com uma agenda em papel, que me pareceu o equivalente existencial de plantar uma árvore. É bonita, cheira a tinta fresca e, ao contrário do calendário digital, não se apaga sozinha.
Claro que uma agenda em papel não podia andar sozinha. Repesquei as minhas canetas de tinta permanente, incluindo uma que, na faculdade, me fazia sentir o herdeiro espiritual dos profícuos escritores dos tempos pré-teclas. Enchi-as com uma cerimónia quase litúrgica, só para descobrir que a tinta tem uma vontade própria e acha que “manchar” é um verbo subvalorizado. Deixei marcas de azul pela mesa e, por um instante, considerei que retomar os hábitos digitais talvez não fosse a pior das opções. Mas haja longanimidade, diria Camilo! Ainda assim, houve algo poético naquele momento de fracasso: a escrita, afinal, é também sobre deixar marcas – mesmo que sejam das que nenhum detergente soluciona.
A verdadeira revolução estava, contudo, guardada para o final: recuperar o meu Nokia, um objeto que, no seu tempo, sobreviveu a quedas, cafés derramados e até à inveja dos amigos. Lembrei-me de que tinha um toque polifónico do Crazy Frog e senti um misto de nostalgia e vergonha. Liguei-o à corrente, esperei umas horas e, quando a luz verde acendeu, senti-me invencível. Não me importei com a ausência de internetes, notificações ou emojis. Ali estava eu, com um dispositivo cuja única utilidade era… telefonar. No fundo, é uma espécie de minimalismo tecnológico. Ou masoquismo ligeiro. Seja como for, aqui estou, à espera que me liguem – ou que a civilização volte a precisar de telefones indestrutíveis.
Claro que uma agenda em papel não podia andar sozinha. Repesquei as minhas canetas de tinta permanente, incluindo uma que, na faculdade, me fazia sentir o herdeiro espiritual dos profícuos escritores dos tempos pré-teclas. Enchi-as com uma cerimónia quase litúrgica, só para descobrir que a tinta tem uma vontade própria e acha que “manchar” é um verbo subvalorizado. Deixei marcas de azul pela mesa e, por um instante, considerei que retomar os hábitos digitais talvez não fosse a pior das opções. Mas haja longanimidade, diria Camilo! Ainda assim, houve algo poético naquele momento de fracasso: a escrita, afinal, é também sobre deixar marcas – mesmo que sejam das que nenhum detergente soluciona.
A verdadeira revolução estava, contudo, guardada para o final: recuperar o meu Nokia, um objeto que, no seu tempo, sobreviveu a quedas, cafés derramados e até à inveja dos amigos. Lembrei-me de que tinha um toque polifónico do Crazy Frog e senti um misto de nostalgia e vergonha. Liguei-o à corrente, esperei umas horas e, quando a luz verde acendeu, senti-me invencível. Não me importei com a ausência de internetes, notificações ou emojis. Ali estava eu, com um dispositivo cuja única utilidade era… telefonar. No fundo, é uma espécie de minimalismo tecnológico. Ou masoquismo ligeiro. Seja como for, aqui estou, à espera que me liguem – ou que a civilização volte a precisar de telefones indestrutíveis.
11.1.25
Sábado à mesa dos heróis do suor
Há algo de heróico, quase mítico, num café junto a um health club ao sábado de manhã. Não falo da minha modesta tosta mista — que, diga-se, chegou à mesa com uma determinação que nem todos os atletas na sala pareciam ter — mas sim do espetáculo humano: um desfile de fatos de treino que prometem glórias inalcançadas e cabelos ainda gotejando, como se tivessem emergido, triunfantes, de uma batalha aquática. A humidade capilar, aliás, parece ser o novo perfume do sucesso, exalando um certo «eu estive na piscina enquanto tu estavas na cama». E eu, munido apenas de um galão e da ironia, senti-me um infiltrado nesse universo de endorfinas alheias.
Enquanto mordiscava a tosta, observei uma jovem a espreitar o menu como quem consulta uma bula médica — quase como se as calorias listadas fossem enredos de um destino trágico. Na mesa ao lado, um homem de meia-idade, com um fato de treino que dizia «Team Nike» nas costas (embora o espírito de equipa estivesse claramente ausente), dissecava o seu iogurte natural como um cirurgião hesitante. Tudo nesta cena tinha um rigor involuntariamente cómico, como se o café fosse uma extensão do health club: aqui, não se burilam músculos, mas sim resoluções de vida. E eu, pecador confesso, a saborear o meu pequeno-almoço sem qualquer remorso.
No final, paguei a conta sob os olhares vigilantes de um grupo de veteranas de zumba, todas com toalhas sobre os ombros como gladiadoras modernas. Saí para a rua com a sensação de que o meu galão havia sido uma pequena rebelião contra a austeridade nutricional da sala. Mas o mais curioso é que, enquanto atravessava a porta, ouvi uma frase de um instrutor — que ecoará pela eternidade: «É tudo uma questão de equilíbrio». Naquele momento, soube que tinha vencido: não a batalha do corpo, mas a da alma. Afinal, há mais sabedoria numa tosta do que em muitas repetições de supino.
Enquanto mordiscava a tosta, observei uma jovem a espreitar o menu como quem consulta uma bula médica — quase como se as calorias listadas fossem enredos de um destino trágico. Na mesa ao lado, um homem de meia-idade, com um fato de treino que dizia «Team Nike» nas costas (embora o espírito de equipa estivesse claramente ausente), dissecava o seu iogurte natural como um cirurgião hesitante. Tudo nesta cena tinha um rigor involuntariamente cómico, como se o café fosse uma extensão do health club: aqui, não se burilam músculos, mas sim resoluções de vida. E eu, pecador confesso, a saborear o meu pequeno-almoço sem qualquer remorso.
No final, paguei a conta sob os olhares vigilantes de um grupo de veteranas de zumba, todas com toalhas sobre os ombros como gladiadoras modernas. Saí para a rua com a sensação de que o meu galão havia sido uma pequena rebelião contra a austeridade nutricional da sala. Mas o mais curioso é que, enquanto atravessava a porta, ouvi uma frase de um instrutor — que ecoará pela eternidade: «É tudo uma questão de equilíbrio». Naquele momento, soube que tinha vencido: não a batalha do corpo, mas a da alma. Afinal, há mais sabedoria numa tosta do que em muitas repetições de supino.
10.1.25
A ciência do travão
Durante anos, considerei-me um condutor exemplar, uma espécie de maestro das estradas, regendo o trânsito com movimentos precisos do acelerador e uma delicadeza quase artística no travão. A cada curva, imaginava os aplausos silenciosos dos outros condutores, testemunhas da minha perícia. Essa ilusão, no entanto, desmoronou no dia em que a App do meu carro decidiu quantificar a minha habilidade ao volante. Pontuação por travagens, acelerações, velocidade constante. Descobri, com a frieza dos algoritmos, que o meu virtuosismo não passava de uma melodia desafinada.
A travagem brusca ao evitar um peão aventureiro? Menos cinco pontos. A aceleração necessária para não ser engolido por um autocarro que considerou o meu espaço como extensão natural do seu? Outro desconto. E que dizer da velocidade constante, um conceito aparentemente banal, mas que, no trânsito de Lisboa, se revela tão utópico quanto encontrar estacionamento gratuito em Campo de Ourique? A App exige que eu mantenha a estabilidade, como se as colinas e os cruzamentos lisboetas fossem linhas rectas ideais de um manual alemão, e não o caos topográfico que conhecemos.
O pior, contudo, não é o julgamento implacável da App, mas a sua indiferença ao contexto. Não há botão para justificar o pequeno desvio necessário para evitar uma mota estacionada em plena faixa, nem para explicar que o salto abrupto no acelerador foi o equivalente urbano de escapar a um javali na autoestrada, mas em versão carrinha de entregas desgovernada. Agora, cada viagem termina não com o sentimento de dever cumprido, mas com uma pontuação sarcástica e uma sugestão de «melhoria». Afinal, o que começou como uma avaliação da minha condução tornou-se numa metáfora perfeita para a vida moderna: estamos sempre a ser avaliados, nunca suficientemente bons — nem sequer para um algoritmo que, de certeza, foi programado por alguém que, ao contrário da canoa, não sabe quantas docas tem Lisboa, ainda menos quantas muralhas ela tem.
A travagem brusca ao evitar um peão aventureiro? Menos cinco pontos. A aceleração necessária para não ser engolido por um autocarro que considerou o meu espaço como extensão natural do seu? Outro desconto. E que dizer da velocidade constante, um conceito aparentemente banal, mas que, no trânsito de Lisboa, se revela tão utópico quanto encontrar estacionamento gratuito em Campo de Ourique? A App exige que eu mantenha a estabilidade, como se as colinas e os cruzamentos lisboetas fossem linhas rectas ideais de um manual alemão, e não o caos topográfico que conhecemos.
O pior, contudo, não é o julgamento implacável da App, mas a sua indiferença ao contexto. Não há botão para justificar o pequeno desvio necessário para evitar uma mota estacionada em plena faixa, nem para explicar que o salto abrupto no acelerador foi o equivalente urbano de escapar a um javali na autoestrada, mas em versão carrinha de entregas desgovernada. Agora, cada viagem termina não com o sentimento de dever cumprido, mas com uma pontuação sarcástica e uma sugestão de «melhoria». Afinal, o que começou como uma avaliação da minha condução tornou-se numa metáfora perfeita para a vida moderna: estamos sempre a ser avaliados, nunca suficientemente bons — nem sequer para um algoritmo que, de certeza, foi programado por alguém que, ao contrário da canoa, não sabe quantas docas tem Lisboa, ainda menos quantas muralhas ela tem.
9.1.25
O mito da frontalidade sem filtro
Há uma figura social que se repete com a previsibilidade de uma maré; não é a de quem entra numa sala de forma discreta, mas antes a de quem anuncia a sua chegada com um refrão quase épico: «Eu sou muito frontal, digo sempre tudo o que penso». O tom é de um cruzado moral, como se a sinceridade bruta fosse uma virtude inquestionável, e não apenas um ato de impaciência verbal. Curiosamente, esta frontalidade raramente se aplica a uma autoanálise — há algo de fascinante no facto de estas pessoas nunca dizerem: «Sou tão frontal que às vezes sou um idiota». Não. A frontalidade, aqui, é uma via de sentido único.
Depois, há o acréscimo inevitável: «Comigo sabem sempre com o que contar». Como se a previsibilidade fosse um elogio. Imaginem se Tolstói tivesse seguido essa lógica e começado Anna Karenina com: «Todas as famílias felizes são iguais e é isso, não esperem mais nada». Seria um descalabro literário, mas aparentemente, na vida social, a ideia de ser uma personagem unidimensional é vendida como virtude. E o pior é que, em muitos casos, o conteúdo da tal frontalidade é uma coleção de banalidades mal-disfarçadas de coragem: «Aquela tua camisa parece-me da feira de Carcavelos», «Já fazias uma dietazinha, não?». Nada que algum silêncio bem colocado não resolva.
O que me intriga é esta certeza de que dizer tudo o que se pensa é sempre um bem maior. Afinal, quem disse que cada pensamento merece ser dito? Descartes afirmou: «Penso, logo existo» — não «Penso, logo manifesto opiniões desnecessárias». A vida, já saturada de ruído, não pede mais um comentário frontal sobre a chuva ou o trânsito. Pede a elegância de saber quando a frontalidade se torna mero exibicionismo e quando o silêncio, esse luxo subestimado, é a mais nobre das verdades.
Depois, há o acréscimo inevitável: «Comigo sabem sempre com o que contar». Como se a previsibilidade fosse um elogio. Imaginem se Tolstói tivesse seguido essa lógica e começado Anna Karenina com: «Todas as famílias felizes são iguais e é isso, não esperem mais nada». Seria um descalabro literário, mas aparentemente, na vida social, a ideia de ser uma personagem unidimensional é vendida como virtude. E o pior é que, em muitos casos, o conteúdo da tal frontalidade é uma coleção de banalidades mal-disfarçadas de coragem: «Aquela tua camisa parece-me da feira de Carcavelos», «Já fazias uma dietazinha, não?». Nada que algum silêncio bem colocado não resolva.
O que me intriga é esta certeza de que dizer tudo o que se pensa é sempre um bem maior. Afinal, quem disse que cada pensamento merece ser dito? Descartes afirmou: «Penso, logo existo» — não «Penso, logo manifesto opiniões desnecessárias». A vida, já saturada de ruído, não pede mais um comentário frontal sobre a chuva ou o trânsito. Pede a elegância de saber quando a frontalidade se torna mero exibicionismo e quando o silêncio, esse luxo subestimado, é a mais nobre das verdades.
8.1.25
O pacto do café e do chocolate
Há algo profundamente alquímico na combinação de café e chocolate, um pacto que transcende o mero paladar e entra nos domínios do existencial. O café, esse líquido escuro e encorpado, promete lucidez enquanto exala o aroma de manhãs ambiciosas. Já o chocolate, suavemente agridoce, oferece indulgência, como se nos recordasse que a vida não é apenas trabalho, mas também romance. Quando juntos, criam um diálogo secreto: o café murmura urgências, enquanto o chocolate sussurra recompensas. Entre goles e dentadas, o espírito humano encontra uma síntese perfeita entre ação e contemplação, como se ao menos por um momento a civilização tivesse resolvido os seus dilemas.
Porém, essa união, ainda que mágica, não deixa de ser um jogo de poder. O café, claro, é o mais teatral, entrando em cena com a intensidade de uma ópera, exigindo atenção e pontualidade — nunca se toma um espresso de ânimo leve. Já o chocolate, mestre da subtileza, insinua-se, derretendo devagar, como quem sabe que o prazer verdadeiro não tem pressa. Juntos, tornam-se cúmplices numa pequena conspiração: distraem-nos do cinismo do mundo, concedendo-nos uma pausa que é ao mesmo tempo íntima e universal. Nenhuma reunião fracassada ou notícia deprimente resiste a este pacto reconfortante entre o amargo e o doce.
Mas talvez o maior segredo do café e do chocolate seja o seu apelo contraditório — prometem energia e indulgência numa só dose, como se a vida fosse simultaneamente urgente e eterna. Há quem diga que a gula por eles revela uma fraqueza humana, mas seria mais justo chamar-lhe sabedoria ancestral: um reconhecimento tácito de que, mesmo no turbilhão das responsabilidades e das dietas, o simples gesto de saborear um quadrado de chocolate acompanhado por um café é uma forma de resistência. Resistência à pressa, à monotonia, à austeridade. Porque, no fundo, entre a espuma do cappuccino e o brilho do praliné, está escondida a lição mais doce: viver bem é um exercício de equilíbrio, onde a gravidade das decisões encontra sempre um espaço para o levitar do prazer.
Porém, essa união, ainda que mágica, não deixa de ser um jogo de poder. O café, claro, é o mais teatral, entrando em cena com a intensidade de uma ópera, exigindo atenção e pontualidade — nunca se toma um espresso de ânimo leve. Já o chocolate, mestre da subtileza, insinua-se, derretendo devagar, como quem sabe que o prazer verdadeiro não tem pressa. Juntos, tornam-se cúmplices numa pequena conspiração: distraem-nos do cinismo do mundo, concedendo-nos uma pausa que é ao mesmo tempo íntima e universal. Nenhuma reunião fracassada ou notícia deprimente resiste a este pacto reconfortante entre o amargo e o doce.
Mas talvez o maior segredo do café e do chocolate seja o seu apelo contraditório — prometem energia e indulgência numa só dose, como se a vida fosse simultaneamente urgente e eterna. Há quem diga que a gula por eles revela uma fraqueza humana, mas seria mais justo chamar-lhe sabedoria ancestral: um reconhecimento tácito de que, mesmo no turbilhão das responsabilidades e das dietas, o simples gesto de saborear um quadrado de chocolate acompanhado por um café é uma forma de resistência. Resistência à pressa, à monotonia, à austeridade. Porque, no fundo, entre a espuma do cappuccino e o brilho do praliné, está escondida a lição mais doce: viver bem é um exercício de equilíbrio, onde a gravidade das decisões encontra sempre um espaço para o levitar do prazer.