21.8.25

Da arte

Na mesa ao lado, na cafeteria do museu, os pais do pequeno e hiperativo infante, criaram, cada um deles, o seu momento de paz, pintando — eles mesmos — com a meticulosidade de um Monet, os livros de colorir que se destinariam ao pequeno desordeiro, caso ele tivesse a paciência, a intenção ou, simplesmente, o desespero, dos exauridos progenitores.

8.8.25

Travessia

A água é uma só coisa, e uma só coisa por milhas.

A água é uma só coisa, e torna esta ponte,

Erguida sobre ela, noutra. Caminha-a

Cedo, e volta a caminhá-la quando o dia esmorece — todos

Se erguem apenas para reencontrar o descanso.


Trabalhamos, começamos de um lado do dia

Como o único sol de um planeta, olhos fixos

Até que a chama desça. A chama desce. Graças a Deus

Sou diferente. Calculei e pesei. Não atravesso

Para voltar. Estou firme

Numa coisa vasta. Estende-se

Tão longa como o mar. Sou mais do que um vencedor, maior

Que a bravura. Não marcho. Sou o que salta.


[Jericho Brown, versão de x. Poema apresentado nos comentários num post abaixo.]

27.7.25

O mundo ao contrário

Menina Shakti agarra-me os tornozelos e puxa-me as pernas -- o com elas o corpo todo -- para mais perto do tecto. Não que eu estivesse a fazer batota, ou pouco concentrado na prática, mas no quotidiano sou mais adepto de ter a cabeça acima dos ombros e não abaixo deles. Os pés lá em cima, acontece-me com menos frequência e, em geral, só aqui, na aula de ioga. Tirando isso, e que me recorde, apenas aquele tombo aparatoso, faz agora vários anos, na calçada polidíssima, reluzente, do verão de uma da sete colinas. Ver o mundo ao contrário, mais do que uma ciência, é uma arte: não pode ser deixado aos acasos e acidentes inestéticos e dolorosos de um amador. Mais uns meses, leitora, e serei especialista em estar de cabeça no chão. De cabeça no ar, prática não me falta. Para mudar de hábitos, aqui como em tudo, o melhor é começar por baixo, que é onde as certezas costumam perder a compostura.

22.7.25

Ler mais

Depois de ter levado a primeira metade do ano a ler quase em exclusivo poetas portuguesas e portugueses, livros publicados nesta década, constatei hoje, ao rever a lista de títulos e autores, que não recordo qualquer poema, um verso sequer, algo que possa dizer numa tertúlia literária, numa sombra de esplanada. Não haverá, decerto, relação com a qualidade das obras, com a arte dos escribas ou o olhar cirúrgico dos editores. A falha só pode ser da minha esparsa memória, das noites curtas e dos dias longos, do excesso de leitura, ou -- talvez mais acertadamente -- da falta de leitura. Porque, quem sabe, me escapou quem me faria decorar versos como me aconteceu ao longo de décadas com Eugénio, com Herberto, com Sofia, com Pessoa (claro). A solução é sempre, em caso de dúvida, ler mais. Tenho a certeza de que a leitora não discordará -- pois não?

18.7.25

Oceano Pacífico

O meu relógio esperto (*) avisa-me que o meu nível de stress aumentou hoje e recomenda-me ouvir umas músicas suaves para -- alegadamente -- o reduzir a volumes sensatos. Fizesse ele verdadeiramente jus ao epíteto de inteligente, dir-lhe-ia que hoje passei grande parte do dia a trabalhar compassadamente numa biblioteca, enquanto ouvia -- em auscultadores, pois claro -- música de ilhas banhadas pelo Oceano Pacífico. A meio do dia almocei num dos meus restaurantes do coração e ao final de tarde, alongo as horas numa esplanada que não desmerece do dia. Se, com tal agenda, o meu stress aumentou, não há música que eu conheça -- e duvido que exista, leitora, que me diz? -- capaz de mitigar, já para não dizer, defender, o meu caso. Irrecuperável, assim me parece.

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(*) Creio que esta expressão tem direitos de autor. Aqui se presta a devida vénia a quem os detém.

14.7.25

Da sorte

À Senhora que hoje de manhã, conduzindo com um cigarro numa mão e um telefone na outra, se atravessou à minha frente não respeitando a prioridade, a que cedi -- que remédio -- passagem, para que o dia não azedasse para ambos logo às nove horas de manhã, à Senhora, digo, compre a lotaria, o totoloto, o euromilhões; experimente o mergulho em apneia, o paraquedismo, uma viagem à caldeira de um vulcão. Sorte assim não se desperdiça, deve ser aproveitada ao extremo, para acumular riqueza material e, quem sabe, cognitiva. Experimente até conduzir sem qualquer mão no volante -- não que hoje o volante parecesse especialmente sob controlo. Experimente, mas longe de mim. Eu, pelo meu lado, enquanto me recordar, fugirei daquela rua como quem foge da má-sorte, a oito pés, não sete, e sem olhar para qualquer rasto na poeira.