24.2.24

25.1.24

Desafinação

Ao nómada digital que, sentado na mesa ao lado na padaria que também serve cafés, tinha montado computador elevado, teclado, rato, tabuleta sofisticada, tudo pela módica quantia de um copo de água com rodela de limão e que, não fora isto bastante, ainda cantarolava em voz alta o que os auscultadores lhe debitavam nos ouvidos, só tenho a dizer isto: É que os que aturam desafinados, também têm coração.

24.1.24

Chama

A determinação de jamais voltar a comprar um livro, tomada depois de ontem olhar em cuidados para as minhas martirizadas estantes, durou exatamente um dia, melhor, uma romagem produtiva a livrarias da Avenida de Roma. Como as dietas que sempre começam no dia seguinte, esta, livresca, também. A partir de hoje não volto a comprar livros. Tão certo — aqui prometo, de palma da mão na chama da vela — como dois e dois serem vinte e dois.

23.1.24

The Twilight Zone

E quando compras um livro em alfarrabista, primeira edição de obra de autora portuguesa de sublime prosa, e o livro te chega a casa embrulhado em cartão da Amazon, e ainda, dito cartão, com etiqueta com nome e morada completos de outro cliente que não tu?

7.1.24

Sotaques

Não fiquei convencido de que o inglês com sotaque italiano de Penélope Cruz não fosse antes inglês com sotaque espanhol. De qualquer modo, nessa corrida, digamos, ela leva a palma a Adam Driver, que tem de fingir um sotaque de língua de raiz latina sobre um inglês nativo. Enzo Ferrari, que era homem perspicaz, ter-se-ia rido na cara dos executivos de Hollywood, decerto seus clientes, que ainda acham necessária tal pantominice com sotaques. Dizem os bons princípios do negócio que não se deve troçar da freguesia, mas tenho a certeza de que, neste caso, ele abriria exceção.

6.1.24

Respirar

É do carro que quebrou lá fora, veio Seu Evandro descansar a freguesia do restaurante sobre o suspeito cheiro a gás que, de súbito, subjugou a sala. É gasolina, não é gás, eu fui confirmar, reconfortou. E a mãe que embalava um carrinho de bebé na mesa ao lado da minha, suspirou de alívio. Ah, exagero, mil perdões. Afirmou o seu alívio, que, naquele momento, com tal cheiro, até suspirar era ato proibido. Até respirar, quanto mais.

5.1.24

Melancólico

Senhor Ilídio, que veio fazer a obra, tem olhar melancólico, voz pausada, jeito fatalista que não desmereceria em noite de fado em viela da Madragoa. Vejo-o, ao fim da jornada, a arrumar as ferramentas numa caixa e a retirar as canetas de outra. Vejo-o a manuscrever poemas à socapa, como afinal todos nós, os que não proclamamos, Silêncio! que se vai escrever um poema. O homem das obras, tem obra, tenho a certeza. É é secreta, ao contrário da que por aqui andou a elaborar, que é bem notória. O essencial é invisível à vista, dizia Saint-Exupéry, a quem, decerto, não se poderia acusar de falta de visão para estas — e muitas outras — realidades.

4.1.24

Criador

Menino Ricardo, telefona-me Prima Vaz, esteve doente na véspera de Natal, mas já está melhor, felizmente, que não seja motivo de cuidados. Mana Gabriela, não esteve, resistiu ao vírus, o que mostra aquilo que é sabido sobre o Eterno Feminino: que o Criador original se esmerou mais com Eva do que com Adão. É bem verdade que a prática faz o perito, e até mesmo o Divino precisou de fazer um protótipo antes de produzir obra definitiva. Se o Criador de Criadores criasse uma Criadora, agora que já tem experiência de um Criador, imaginem-se os mundos maravilhosos que daí não resultariam. Fica a dica, a quem Lha conseguir fazer chegar.

3.1.24

Desvario

A melhor escrita de Agustina está nas suas crónicas de jornal. O formato de duas páginas não deixa que se perca na narrativa, e com ela o leitor, apesar da sempre magnífica prosa. Não deve ser opinião popular, mas também não o digo para ganhar algum concurso -- apenas como ponto de leitor fidelíssimo. Reincido no dislate: a melhor escrita de Dulce Maria Cardoso está nas suas crónicas da Visão, entretanto editadas em dois volumes, até agora (“Autobiografia não autorizada”, Tinta da China) e não nas novelas. O motivo é decalcado do que avento para Agustina. “Desvario laborioso e empobrecedor é o de compor vastos livros; o de espraiar por quinhentas páginas uma ideia cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos.”, disse Borges, no Prólogo de Ficciones. Seria desvario maior da minha parte tentar dizer mais uma palavra sobre o assunto. E assim me calo.

2.1.24

Cabelo

É bem verdade que O Danúbio Azul de Strauss não é a Sétima de Beethoven, e que se na segunda obra é ponto de honra um maestro despentear-se, na primeira terá de se esforçar muito para desalinhar um penteado minimamente competente. Mas em todo o concerto de Ano Novo, o cabelo de Christian Thielemann não se moveu um milímetro da cuidadosa arquitetura com que entrou. Ocasião especial exige laca reforçada, a fazer jus a cabelo meticulosamente tingido e aparado. Beethoven, que viveu pertinho do Musicwerein, onde se realiza o concerto de Ano Novo, teria opinião diferente. A cada cabeça, sua sentença, contudo — e sobre isso até ele e Thielemann não deixariam de concordar.