14.7.25

Da sorte

À Senhora que hoje de manhã, conduzindo com um cigarro numa mão e um telefone na outra, se atravessou à minha frente não respeitando a prioridade, a que cedi -- que remédio -- passagem, para que o dia não azedasse para ambos logo às nove horas de manhã, à Senhora, digo, compre a lotaria, o totoloto, o euromilhões; experimente o mergulho em apneia, o paraquedismo, uma viagem à caldeira de um vulcão. Sorte assim não se desperdiça, deve ser aproveitada ao extremo, para acumular riqueza material e, quem sabe, cognitiva. Experimente até conduzir sem qualquer mão no volante -- não que hoje o volante parecesse especialmente sob controlo. Experimente, mas longe de mim. Eu, pelo meu lado, enquanto me recordar, fugirei daquela rua como quem foge da má-sorte, a oito pés, não sete, e sem olhar para qualquer rasto na poeira.

13.7.25

Não temos cervejas normais

E tremoços, não terá? pergunto eu, ao balcão, a Menina da Cervejaria Artesanal, quando ela pousa a minha Irish Stout acabada de sair de uma das copiosas torneiras da parede. É evidente que em Dublin ninguém faria tal escolha para emparceirar com uma Stout -- lupins, seriously? Mas Menina acena com a cabeça, em sinal de assentimento -- não estamos em Dublin, afinal. Tenho, tenho, responde. Os melhores da cidade. E remata, com indisfarçável sotaque portuense, Temperados com muito amor e carinho. Decerto -- no centro de Lisboa, onde se situa dita Cervejaria Artesanal, ninguém mais tempera tremoços assim, com especiarias e um toque de picante, até. Primeiro estranham-se, depois... não vale a pena requentar o que escreveu o Poeta, não muito longe daqui. Numa palavra: recomendam-se. E entretanto, no outro lado do balcão, houve um cliente que aqui veio pedir Super Bock. Não temos. O cliente não leu -- ou não soube interpretar, o que vem a dar no mesmo -- o aviso por cima do balcão, melhor, um brado: Não temos cervejas normais. Também a palavra normal pode ser um anátema, pois não, leitora?

11.7.25

O bater de asas

Menina Shakti, a instrutora de yoga, vai radiar de júbilo com a ténue chuva de hoje e com a baixa de temperatura que se lhe seguiu, quase um assomo de outono à segunda semana de julho. Com os instruendos em processo de fusão a cada asana mais contorcida, Menina teve de restringir o repertório de modo a evitar que os seus transpirados e exauridos aprendizes não saíssem de maca por desidratação acelerada. Resultado: semanas de prática suavíssima, quase yoga nidra a anteceder o yoga nidra propriamente dito, mas ao menos sobrevivência coletiva -- presume-se que da maioria, pelo menos. Alguns dos regulares tornaram-se entretanto irregulares, mas acreditemos na sabedoria dos gálicos, pas de nouvelles, bonnes nouvelles. A prática voltará, assim se espera, se esta temperatura se mantiver equilibrada, ao seu ritmo habitual, mais rigoroso, mais alongado. O problema é que o equilíbrio do tempo, ou de São Pedro, o seu padroeiro, ou de ambos, não é lá grande coisa. Ai de mim, ainda assim melhor do que o meu, leitora, melhor do que o meu.

9.7.25

Misticismo balnear

Eu não gosto de ir para a praia com os meus amigos, diz Menino Ricardo. Eu gosto é de ir com a mamã e o papá. Prima Vaz telefona-me a dar nota da época balnear do neto, no colégio lá dele. Bem o entendo: quem é que quer ir a banhos num autocarro rodeado de dezenas de infantes barulhentos e desinquietos? Uma ida à praia deve ter o recolhimento, sei lá, de uma ida ao Convento dos Capuchos ou a solenidade de uma descida às catacumbas de El Escorial, em romagem aos restos de Carlos V. Nada de misturas com hordas de humanos, qualquer que seja a respetiva faixa etária, que não entendam a mística de tais atividades. Menino Ricardo está, sem dúvida, destinado a grandes feitos: quem sabe, um dia, irá à praia apenas quando tiver a certeza de que não se deparará com toalhas no areal pelo menos cinquenta metros em redor. Como eu, leitora.

6.7.25

Questões obrigacionais

Senhor Pedro da esplanada, mais daqui a pouco, quando fizer menos calor e lá me for sentar, haverá de me perguntar, Então o que é que o menino vai querer hoje? Bem demais sabe ele, que eu sou ser de hábitos firmes como os pilares que espreitam, orgulhosos, no rio em frente. Mais tarde, quando for à caixa pagar, o que acontecerá quando o Sol já se tiver rendido lá ao rés do horizonte, questionar-me-á, Então o que é que o cavalheiro paga? Ou as duas ou três horas de esplanada me trocam a idade como um relógio sem travões, ou, pelo contrário, Senhor Pedro faz uma distinção inequívoca entre o eu que pede e o eu que suporta, no fim, as consequências do que consumi. Antes posso ser irresponsável, mas na hora de me chegar à caixa, é o cidadão respeitoso e cumpridor que entrega o cartão e mais um punhado de moedas para o jarro das gorjetas. Não há equívocos. Que isto, leitora, da frequência das esplanadas é, tal como aqueles anúncios que dantes apareciam nos jornais, antes de toda a gente fazer tudo e de tudo com um ecrã à frente dos olhos, uma coisa com que não se brinca. Assim: Cavalheiro culto e asseado procura esplanada para relação estável e de longo prazo. Assunto sério.

5.7.25

O meu papel

A produção de papel pode acabar amanhã no mundo, que eu ainda conseguiria suprir as minhas necessidades de cadernos assim como as de um pequeno ou até médio país, talvez uma Espanha ou, quem sabe, uma Alemanha -- mais milhão menos milhão de cidadãos, ansiosos por deixarem aos vindouros as respetivas memórias cuidadosamente curadas. Japão, não prometo, que os nipónicos gostam pelo menos tanto de papel de escritas como eu; Índia ou China, não, de todo, que a minha capacidade de armazenamento não chega para tanto. Ah, vontade, sim, mas vontade não se traduz facilmente em volumetria de espaço disponível. Também teria capacidade de abastecer de canetas, esferográficas, tinteiros e tudo o que possa deixar marcas vivas ou ténues no dito papel o país feliz contemplado pelo meu tesouro de folhas alvas. Agora, em especial, que descobri fornecedores do outro lado do mundo que são capazes de entregar em menos tempo do que eu mudo de ideias, todos os formatos necessários -- e tantos o são. Pois existe uma porção de A, do 6 ao 4 (até A3, para a impressora, mas isso noutra secção), de B, idem, e até de H, que também os há (como o H5, uma espécie de A5 tratado a Ozempic). Ou todas as cargas de caneta, e variações de formulações de tinta. Gosto dos cadernos cosidos mais do que dos agrafados, e gosto das folhas creme mais do que das brancas. Das capas de cartão kraft, dos cantos arredondados, que estejam sempre à distância de um impulso de escrita, ainda que seja, como é, na maioria das vezes, uma minudência inconsequente. Hão-de faltar-me as palavras antes que me falte o papel. E é assim que deve ser. Ou não, leitora?