27.5.22

Missiva sobre os rebuçados Doutor Bayard

Recebo uma carta escrita a tinta azul-cobalto, na qual reconheço a caligrafia treinada nos clubes de Oxford, pela pena de 18 quilates da ST Dupont Olympio de J. Eustáquio de Andrada, professor jubilado do Magdalen College, atualmente a viver os seus anos dourados no amplexo cálido da dulcíssima Orchidée.

Meu muito estimado amigo,

A Casa d’Andrada está, enquanto lhe escrevo, transformada na antecâmara de uma expedição como não há memória desde a comitiva enviada por D. Manuel I a Leão X. Caixas de primeiros, segundos e terceiros socorros, máscaras suficientes para equipar a todos os descendentes de Gengis Khan, álcoois em quantidade tal que envergonhariam a Seagram’s, para além de legumes e coisas verdes capazes de alimentar um país em vias de desenvolvimento, com sobras para algum desenvolvido que esteja a passar dificuldades. Ao meu lado, alguém que não irei aqui denunciar publicamente, verte lágrimas copiosas como o Danúbio Azul espraiando-se ao som de uma valsa de Strauss: «Pauvre, pauvre J. Comment survivra-t-il enfermé, incapable de voir le soleil, de tremper ses délicats petits pieds dans la mer?»

Fontes seguras dizem-me que o meu estimado se deixou finalmente apanhar pelo micróbio da década, e que se está a tratar usando os mais modernos avanços da medicina desenvolvidos nos famosos centros de Pyongyang: gorgolejar com água salgada, beber chás de gengibre adocicados com mel e deixar derreter cubos de gelo na boca, alternados com rebuçados Doutor Bayard. Medicina de ponta, como seria de esperar de quem passa a vida aferrolhado em livros que têm, no mínimo, cem anos em cada capa.

Pragmática, a Dulcíssima decidiu tomar o assunto nas delicadíssimas mãos e está a organizar missão de salvamento, que tocará em breve numa porta perto de si, com todos os meios de tratamento e sobrevivência fundamentais em tais casos, incluindo as cestas de piquenique vegetarianas que Orchidée encomendou pessoalmente ao senhor Fortnum, da Fortnum & Mason, estabelecida, como sabe, em Londres, desde 1707.

Na sua infinita caridade, a Dulcíssima preparou-se, oh, a generosa, para se estabelecer, esta minha Florence Nightingale do século XXI, algures na casa do meu amigo, nalgum canto que não esteja pejado de livros, durante os próximos sete dias, senão mais, o que for necessário para que possa voltar a ver a luz do Sol e a molhar os seus delicados pezinhos, palavras da Insigne, nas águas do mar. Não é ela a bondade em pessoa?

Não se mexa: a ajuda vai a caminho. Aliás, a embaixada acabou de partir – e como na canção do Chico Buarque, «a marcha alegre se espalha na avenida» que nasce da Casa d’Andrada.

Aceite um abraço deste que muito o preza, e o da Dulcíssima será dado por braços próprios, naturalmente com o distanciamento de dois metros, no mínimo, a que a ocasião obriga.

J. Eustáquio de Andrada

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