24.5.24

Uma espécie de Feynman

Steve Jobs enganou-se a fazer as contas à diferença de fusos horários entre a Califórnia e a Holanda. A estremunhada mãe de Bas Ording atendeu o telefone antes das seis da manhã e – naturalmente – nem acreditou que do outro lado da linha, era o fundador da Apple a ligar para o jovem e reticente designer de interfaces, recentemente licenciado pela Universidade de Utrecht, a tentar convencê-lo a integrar a companhia que, em mil novecentos e noventa e oito, estava ainda a renascer de um quase colapso financeiro. Muitos telefonemas a desoras depois, incluindo também, e de forma decisiva, um de Jony Ive, o designer de praticamente todos os dispositivos da Apple, Ording mudar-se-ia para a costa leste do Pacífico e viria a criar muito daquilo que hoje tomamos como a interface natural dos nossos telefones e outros dispositivos baseados em toque, nomeadamente o efeito “banda de borracha”, mas também outros como o dito “pinch to zoom” (em que os dedos controlam o nível de ampliação da imagem no ecrã). 

Steve Jobs diria mais tarde que a figura em que se inspirou para criar as suas equipas foi a de J. Robert Oppenheimer, durante a constituição do Project Manhattan. Pelas palavras dele: “Para a maioria das coisas na vida, a diferença entre o melhor e a média é de cerca de 30% ou algo assim. O melhor voo de avião, a melhor refeição, podem ser 30% melhores do que a média. O que vi com o Woz [Steve Wozniak, o cofundador da Apple] era alguém que era cinquenta vezes melhor do que o engenheiro médio. Ele podia ter reuniões na sua cabeça. A equipa do Mac foi uma tentativa de construir uma equipa inteira como essa, jogadores de nível A. As pessoas diziam que não se dariam bem, que odiariam trabalhar umas com as outras. Mas percebi que jogadores de nível A gostam de trabalhar com jogadores de nível A, e simplesmente não gostam de trabalhar com jogadores de nível C. Na Pixar, tinhamos uma empresa inteira de jogadores de nível A. Quando voltei para a Apple, foi isso que decidi tentar fazer. Precisamos de ter um processo de contratação colaborativo. Quando contratamos alguém, mesmo que seja para marketing, vou tê-los a falar com as pessoas de design e engenheiros. O meu modelo era J. Robert Oppenheimer. Li sobre o tipo de pessoas que ele procurava para o projeto da bomba atómica. Não era nem de perto tão bom quanto ele, mas era isso que aspirava fazer.” 

Foi o sucesso da demonstração interna do efeito “banda de borracha” que Bas Ording desenhou inicialmente para a lista telefónica do futuro iPhone, que demostrou a Jobs que a interface tinha atingido um ponto de viabilidade e que o telefone podia avançar. Ording viria a descrever como chegou ao dito efeito: “No entanto, enquanto trabalhava na lista de endereços, reparei que, quando chegava ao fundo ou ao topo da lista, esta simplesmente parava. Eu puxava a lista para baixo, mas ela ficava ali. Parecia que tinha encravado. Sempre que via aquilo, incomodava-me, mas não sabia como resolver. Tentei adicionar um espaço no topo. Quando chegava ao topo da lista, aparecia um pequeno espaço. Mas isso não resolvia o problema, apenas o repetia. O espaço ficava ali, sem se mover. Achei que o espaço teria de se mover com o dedo do utilizador, para mostrar que ainda estava responsivo. Mas isso não parecia certo, então tentei fazer com que se movesse mais lentamente do que o dedo do utilizador, apenas como uma experiência. O efeito foi fazer com que parecesse elástico.” 

Bas Ording, o homem discreto, cujo nome é praticamente desconhecido de todos, mas cujas criações moldam a cada hora, a cada minuto, as interações com os nossos omnipresentes dispositivos, viria a ter o nome em tantas patentes da Apple que o seu quotidiano se tornou impossivelmente complicado. Passava a vida a servir de testemunha nos intermináveis processos que a Apple e outros fabricantes, nomeadamente a Samsung, se moveram mutuamente, em torno daquelas que eram, precisamente, as suas criações. Em dois mil e treze, saiu da Apple para se poder dedicar à sua paixão criativa, e não aos bancos de tribunal. 

Em dois mil e quinze, foi para a Tesla, revolucionar as interfaces dos carros elétricos.

6 comentários:

  1. Tesla uma das maiores fraudes mundiais que irá falir em breve

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    1. Não contesto, sou pouco versado no tema 😊

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  2. Não foi uma mudança muito feliz, creio que mudou para um chefe bem pior.

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    1. Há muitos anos, li alguns livros sobre os primórdios de Steve Jobs -- e, na verdade, ele não era, também, como se diria em bom português, flor que se cheirasse. Nenhum deles o é: nem Bill Gates, nem Mark Zuckerberg o são também. Creio que a característica da eventual irascibilidade, apenas para dar um nome suave a tais características, é o lado negro desta ascensão ao estrelato. O próprio Bas Ording, referido acima, e que tem uma enorme admiração por Jobs, queixa-se que as suas contribuições foram sempre mantidas na sombra, porque causa do secretismo de Jobs. Eu diria que Jobs se soube rodear de pessoas brilhantes, mas que poucas delas, na verdade, se tornaram conhecidas pelo trabalho que lá fizeram (com exceção de Jony Ive, atualmente Sir Jony Ive). Ou seja que, à boa maneira destes ditos empreendedores, se apropriaram -- mal ou bem -- dos créditos de toda uma equipa. Elon Musk será o mesmo, creio, mas em versão mais infantil e ao mesmo tempo mais perigosa, creio.

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  3. É uma bonita história esta que conta, caro xilre. Realmente a interface ali inventada foi um sucesso estrondoso. E é bem capaz de ainda durar muitos anos.
    Qual será a próxima geração? Que realidade aumentada virá para nos tomar de assalto? Uma ionização qualquer das moléculas do ar para criar letras à nossa frente? Quem sabe...
    É fascinante, de facto. Estas pessoas são muito inspiradoras. 😎

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    1. Ontem vi na Netflix um filme chamada Atlas, de 2024, mas passado no futuro, que mostra precisamente interfaces como descreve, cara Susana. Nem de propósito :-)

      Mas a minha opinião, melhor, o meu desejo, vai noutro sentido. As nossas metáforas atuais de interação derivam da antiguidade. Repare: "scroll" vem, na verdade, dos rolos de papiro ("scrolls"). Os "tablets", das tabuletas dos escribas antigos, cobertos de uma camada de cera.

      Eu, ficar-me-ia por uma interface tipo livro. Em que as páginas não tivessem toque de vidro, mas antes com uma textura semelhante ao papel, capazes de conter nelas todos os livros do mundo. Idealmente, escreveria neles também, com um lápis destes meus, que vão de HB a 8B :-)

      Este livro magnífico seria a Biblioteca de Babel de Borges, num livro só. Assim que o fizerem, acamparei à porta da loja para ser o primeiro a comprar, garantido, se na altura os ossos ainda me permitirem uma noite passada ao relento :-)

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