16.3.25

O pastel

O pastel de Belém chega à mesa com a solenidade de um artefacto histórico, envolto na aura que lhe confere a dignidade de algo que transcendeu a mera condição de prazer transitório. O funcionário pousa o prato com o rigor de quem já repetiu este gesto mais vezes do que as que consegue contar, indiferente ao entusiasmo discreto de quem se prepara para a degustação lenta desta prova do engenho dos intermediários de Deus d’outrora. Polvilho canela, sem urgência, observando o leve levantar do fumo que denuncia o calor ainda preso na massa. Há, na crocância do primeiro toque, um prazer que não precisa de justificação: uma rendição silenciosa à decadência óbvia do anti-epicurismo. Ali ao lado, o Mosteiro intui a cena com a indiferença dos que já testemunharam séculos de excessos, sabendo que a gula é, afinal, apenas outra forma de fé.

12.3.25

Chagall e o abraço

os amantes elevam-se

num sopro azul,

sem peso, sem chão,


o abraço torna-se céu,

e a cidade, lá em baixo,

esquece-se de duvidar.

A discreta eternidade dos prefácios

Há livros que nunca chegam a ser lidos, mas cujos prefácios se tornam íntimos, como se a promessa inicial bastasse para substituir a obra inteira. Há também aqueles que vivem suspensos na intenção de serem escritos, existindo apenas nas introduções esboçadas, nas notas dispersas, nas páginas preliminares onde o autor delineia as razões, os limites e as esperanças de um texto que nunca se concretiza. Talvez seja esse o verdadeiro espaço literário: não a obra acabada, mas o território liminar onde tudo é ainda possibilidade, onde a hesitação do autor se confunde com a ilusão do leitor e onde a ideia de um livro, na sua ausência, se torna mais perfeita do que qualquer livro real.

11.3.25

Saramago em Lanzarote

O mar rodeia a ilha, mas não a encerra.  
Aqui, o silêncio precede os homens,  
a lava dorme sob a terra negra  
como uma verdade à espera de voz.

Saramago caminha entre pedras aguçadas,  
escrevendo contra o vento e o tempo.  
Sabe que nada dura,  
mas as palavras, teimosas,  
são a forma mais lenta de desaparecer.

Ao longe, o oceano repete a mesma pergunta.  
Ele responde como sempre respondeu:  
com um livro aberto,  
com um olhar que não teme  
o peso do ponto final.

9.3.25

Geometria da amizade

Encontrar um amigo é um acto de precisão quase matemática, como ajustar um mecanismo descentrado cuja engrenagem finalmente se alinha. Não se trata de preencher um vazio, mas de corrigir um desvio, de restabelecer uma lógica que o mundo, na sua vastidão imperfeita, parecia ter esquecido. Entre duas inteligências que se reconhecem, o tempo não conta: a conversa retoma onde nunca começou, como se as palavras fossem apenas a superfície de um entendimento mais profundo. Não há necessidade de provar nada, porque a amizade verdadeira não se justifica — existe, como um teorema resolvido, uma peça encaixada, um equilíbrio reencontrado.

8.3.25

Dia da Mulher

O Dia da Mulher não é um lembrete do óbvio, mas um intervalo para sublinhar o que tantos fingem esquecer: que o mundo se sustenta na inteligência, na resiliência e na ironia de quem, por séculos, foi empurrada para a margem e, ainda assim, continuou a escrever a história — muitas vezes sem assinar o próprio nome.