Dona Ana entrou no café de Senhor João e pediu um prego e uma salada “para take away”, no tom de quem leva a despacho um registo de propriedade. Durante quinze minutos, tempo indicado por Senhor para término dos trabalhos de confeção, fez ronda discreta pelas montras ao lado da esplanada, num vaivém metronómico, reflectindo-se de vidro para vidro. O meu almoço terminou, entretanto. Escoado o tempo, encontrou o saco à espera, sobre o balcão; pagou, pegou nele com um aceno mínimo e saiu, com o passo calculado de quem tem tudo por fazer.
Li com gosto "o tom de quem leva a despacho um registo de propriedade".
ResponderEliminarBoa noite, Xilre
Boa tarde, bea. É um tom peculiar, não é? Entre o pragmatismo e a resignação, como se o pedido de um prego envolvesse alguma burocracia invisível.
EliminarAs mulheres têm mais dificuldade em se sentar num restaurante a comer sozinhas, talvez por isso ela leve a comida para casa. Pelo menos saiu, viu as esplanadas, espaireceu a solidão.
ResponderEliminarUma leitura perspicaz, CC. Há, de facto, uma certa recusa em aderir ao ritual público da refeição a solo – como se, ao evitar o cerimonial da mesa, se pudesse reduzir a introspeção ao essencial. Talvez esse vaivém pelas montras fosse já um exercício de liberdade, um modo discreto de espairecer a solidão, sem a necessidade de lhe dar um nome ou um lugar fixo.
EliminarPor mais que tentasse, não consegui imaginar sequer esse tom. Se o Sr.Xilre se der ao trabalho de elucidar o ignorante, este agradecia.
ResponderEliminarBoa tarde senhor.
Boa tarde, Joaquim. Imagine alguém a tentar convencer o funcionário do registo predial de que a sua paciência é mais valiosa do que a fila interminável à sua volta. É um tom meio institucional, meio indiferente, onde as palavras são só formalidades e o prego poderia ser uma certidão autenticada.
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