28.12.24

Ano Novo? Nem por isso

Confesso, a ideia de um “ano novo” soa-me a uma dessas campanhas de marketing mal disfarçadas, um Black Friday do tempo. Empurram-nos um calendário reluzente, cheio de promessas vagas e vazias, como se a simples troca de números tivesse o poder de transformar a monotonia dos nossos dias em algo digno de nota. É quase um insulto à inteligência. Porque não admitir logo que o “novo” não passa de uma fachada? A substância, essa, continua a mesma: uma sucessão de segundas-feiras disfarçadas de eternidade.

E se, em vez de insistirem em vender-me um ano imaculado, me oferecessem algo mais honesto? Um ano “seminovo”, com ligeiras marcas de uso – como aqueles carros de serviço em exposição nas concessionárias, com o preço reduzido e o tanque meio cheio. Já vivi tempo suficiente para saber que os anos que têm histórias nos cantos, nódoas nos meses e amolgadelas nos domingos são os que realmente valem a pena. Um setembro já moldado pelas mãos do destino, um março com o cheiro das tardes passadas à janela, a ouvir chuva e velhas canções de embalar saudades.

Imagino até uma espécie de feira de anos usados, organizada com a meticulosidade de um alfarrabista. “Temos aqui um 1983 com um verão escaldante e uma primavera de poucas flores, mas oferece um outubro sublime, de folhas douradas e paixões improváveis.” Ou então um 2004: “Não é o mais brilhante, mas tem uma tranquilidade difícil de encontrar.” Poderíamos trocar anos com amigos, colecionar memórias como quem troca cromos da infância. Nada de ilusões; só o conforto do vivido, do gasto, do polido pela vida.

Mas a sociedade, com a sua voracidade pelo novo, quer empurrar-nos um janeiro perfeito e inabalável. Eu recuso. À meia-noite, enquanto os outros gritam, eu sussurrarei: “Passo.” Não quero fogo-de-artifício nem resoluções. Quero o aconchego de um ano já meu conhecido, talvez 1992, com tardes de verão eternas e um bolo de laranja ainda quente na mesa. Um ano sem pressa, sem pretensões – só um recanto onde me possa sentar e assistir, sem grande alarido, ao rodar do mundo.

8 comentários:

  1. "black friday do tempo" é uma expressão magnífica.
    www.takedireto.wordpress.com

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Agradeço, GWB. A verdade é que às vezes parece mesmo isso, não? Uma liquidação em massa de ilusões, onde o “novo” vem com um preço demasiado alto – o da repetição disfarçada. Votos de um excelente 2025!

      Eliminar
  2. Gostei da "sucessão de segundas feiras disfarçadas de eternidade."
    "Um ano sem pressas nem pretensões" - não sei não, Xilre, está-me parecendo que isso será do mais difícil que há. Mas reconheço, seria também o meu desejo. Só que o movimento dos astros - e dos homens - não vai nesse sentido.
    Mas que o seu desejo se cumpra. E pode crer que é já muito.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Bea, disse tudo: um ano sem pressas e sem pretensões talvez seja a verdadeira utopia moderna. E tem razão, o movimento dos astros – e dos homens – raramente nos dá tréguas. Mas desejar, ainda assim, é uma forma de resistência. Que encontremos, ao menos, motivos para a esperança.
      Feliz Ano Novo!

      Eliminar
  3. Compreendo-o bem e gostei muito do texto. Mas...que seria o mundo despido de rituais?! Nós é que resistimos a entrar no comboio que há anos toca sempre a mesma música (brasileira, de carnaval), como se as gerações afinal não tivessem mudado e o fogo de artifício tivesse estancado no céu, pronto a emergir igualzinho em todos os fins de ano. Mas a desejar e a ser agora, o meu desejo é praticamente igual ao seu e ao da Bea, já somos três:)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. CCF, tem razão, os rituais têm o seu lugar, e talvez o problema esteja em nós, que olhamos o comboio com uma certa descrença… Ou cansaço? Gostei da sua imagem do fogo de artifício parado no tempo, pronto a explodir sempre igual. Que pelo menos o desejo que partilhamos seja um refúgio para todos nós – já somos uma multidão de quatro, pelo que vejo!
      Feliz Ano Novo!

      Eliminar
  4. Fico do vosso lado. Seremos quatro.
    Agrada-me a placidez de um recanto sem atropelos, onde a vida seja tranquila.

    Feliz 2025, Xil.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Que a agitação fique para os que a apreciam -- há gostos para tudo. Os recantos calmos são sempre enseadas indispensáveis para a alma.

      Feliz Ano Novo, Maria Eu

      Eliminar