27.12.24

Entre os anos

Há palavras que são mapas para lugares que não sabemos que habitamos. Os alemães, com a sua precisão quase sobre-humana, chamam zwischen den Jahren a este pedaço de tempo que se estende entre o Natal e o Ano Novo — não um intervalo, mas uma terra de ninguém, onde os dias não pertencem a nenhum dos lados. É, dizem, “entre os anos”, como se por um momento estivéssemos fora da contagem oficial, suspensos num hiato que desafia calendários e obrigações.

A verdade é que este período tem um sabor peculiar, uma espécie de torpor doce, onde o tempo parece envergonhado de continuar o seu caminho. Há uma hesitação no ar, como se o mundo inteiro conspirasse para adiar o inevitável. As agendas estão em branco, as resoluções por cumprir ou ainda por inventar, e os dias… os dias arrastam-se com a lentidão de quem não sabe bem o que fazer de si.

É fácil perdermo-nos aqui. Não propriamente no sentido dramático da palavra, mas naquele perder suave, como quando, de olhos semicerrados, seguimos uma linha no horizonte até nos esquecermos de onde começámos. Se me procurarem agora, aviso desde já: não me encontrarão. Estou preso neste limbo, nesta espécie de purgatório do quotidiano. Tornei-me uma figura difusa, um vulto que desliza, hidratado a tisanas de camomila, entre caixas de bombons vazias e garrafas de espumante por abrir.

Há, claro, um certo conforto nisto tudo. Não há urgências, porque não há tempo. Não há decisões definitivas, porque tudo é provisório. É o momento ideal para protelar, um estado que os portugueses dominam sem esforço, mesmo sem a necessidade de expressões grandiosas como “zwischen den Jahren”. Este intervalo, para nós, não é uma curiosidade linguística: é quase uma filosofia de vida.

E, no entanto, há algo de desconcertante nesta pausa. Como uma folha em branco que assusta mais do que qualquer página preenchida, os dias entre anos confrontam-nos com a ideia de que o tempo pode hesitar — e, se o tempo hesita, que fazemos nós? Não temos prática em existir fora da sua tirania. Por isso vagueamos, sem grandes propósitos, entre os restos de rabanada e a expectativa de fogos de artifício.

“Entre os anos” é onde habitamos as verdadeiras questões existenciais: que fazer com todos os bolos quando já ninguém os quer comer?

1 comentário:

  1. Ah, ah, ah...bolos que ninguém quer comer...isso é em sua casa, Xilre. Ou em casas com pouca gente e muito doce. Muito doce e muita gente, resolvem-se mutuamente:).

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