O karaoke do jantar de Natal da empresa é o momento em que se percebe que a dignidade humana é um conceito relativo. Começa com olhares esquivos e uma resistência passiva. A máquina de karaoke está ali, imponente, a desafiar olhares esquivos. Ninguém quer ser o primeiro. A diretora de RH, sempre entusiasta das “dinâmicas de grupo”, anuncia: «Vamos criar memórias!
O silêncio pesa. Até que o estagiário do marketing — ainda com a coragem que só o contrato a prazo permite — se levanta e entoa “My Heart Will Go On”, num tom que faria o Titanic afundar mais depressa. Celine Dion chora, mas o gelo está quebrado.
O técnico de informática, conhecido pelo verbo parco e o olhar austero, cede ao vinho beirão e ao incentivo dos colegas. Escolhe “Bohemian Rhapsody”. Tenta. Falha. Mas persiste, enquanto a letra no ecrã corre mais depressa do que ele consegue cantar. A determinada altura, há um coro improvisado, porque ninguém aguenta ver aquele homem sofrer sozinho. É bonito e trágico, como uma ópera sem guião.
E depois, claro, há sempre aquele colega. A pessoa que claramente passa as noites de sexta-feira num bar de karaoke e chega ao jantar com a própria playlist ensaiada. No caso em questão, é o diretor financeiro. Sobe ao palco, ajusta o microfone, e começa “New York, New York” com uma confiança que só o excesso de espumante pode justificar. Entrega-se a Sinatra com uma intensidade que rivaliza com a performance original, gesticulando como se fosse a Broadway. Os aplausos não são para ele, mas para o fim.
Mas o auge da noite é a inesperada revelação do diretor-geral. Até ali, mantivera-se no seu canto, distribuindo sorrisos vagos e acenos educados. Subitamente, empunha o microfone. A música começa: “Last Christmas”. A sala vibra. Quem diria que aquele homem sisudo sabia a letra completa? Até um pequeno passo de dança improvisado surge. É um espetáculo estranhamente magnético, como ver um incêndio controlado.
Lá para as três da manhã, quando os empregados do local da festa começam a apagar insistentemente as luzes, há aplausos, selfies e um certo constrangimento geral — exceto para diretor financeiro, que, ainda ao microfone, exige cantar o “My Way” mais uma vez, porque “a noite ainda é uma criança”.
Oh, mamma mia, mamma mia, let me go.
ResponderEliminarUma citação perfeita, diga-se. “Mamma mia, let me go” encapsula bem a angústia partilhada na sala enquanto se desafina com a melhor das intenções.
EliminarNunca assisti a um Karaoke. Mas, pelo menos o início, deve ser confrangedor, sim. Suponho que só muito alegre e em companhia eu seria capaz de tal. Não me vejo a arriscar a sós, já não estou a contrato senão com a vida e essa quer lá saber de karaokes.
ResponderEliminar"Last Christmas" digo eu que foi uma boa aposta. E "My Way" também - mas não seria mais assisado ficar-se o senhor pela óptima surpresa de "Last Christmas"?!
Mais um excelente texto, Xilre (até parece que esteve presente).
Obrigado, bea. (Quem sabe, quem sabe...)
EliminarO contrato com a vida raramente inclui cláusulas para karaokes, mas talvez seja esse o encanto. Quanto ao diretor, diria que o espumante pode ter esborratado o senso comum, como aguarrás lançado sobre uma tela a óleo. O risco de passar de herói improvável a reincidente incomodativo é sempre alto, mas há algo de hilariante e quase admirável na audácia.
Todas as festas têm algo de patético, sempre achei isso. Mas esta está excelente, só há duas hipóteses: ficar a ver ou "esparvoar" também e parece ter escolhido a primeira.
ResponderEliminarHá festas que pedem cumplicidade para se tornarem suportáveis. Escolher o papel de espectador é, por vezes, o último ato de dignidade. Mas "esparvoar" também tem o seu charme — é um exercício de libertação com prazo de validade, como um salto para o vazio com rede.
EliminarO ano passado após o jantar de consoada em família houve karaoke.
ResponderEliminarPaulo, aquele familiar socialista portuense, que não sabe mudar uma simples lâmpada, foi o rei da festa. Este ano, ele volta a Düsseldorf, espero que não venha eufónico.
Este fantástico texto somente pode ser escrito por alguém que esteve presente.
Karaoke em família é uma subcategoria de caos. Paulo soa a personagem que rouba o palco e a paciência, mas também é isso que dá cor a estas reuniões. Que Düsseldorf o acolha sem playlist.
Eliminar(E sim, qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.)