20.12.24

Boas Festas



Que os dias venham como páginas por abrir – escritos em luz e silêncios de inverno, onde cada gesto seja um lume partilhado e cada encontro, uma linha de fogo no tempo.

Que as festas sejam mapas secretos, guiando-nos para onde sempre estivemos, mas só agora reconhecemos como casa.

Boas Festas – o resto deixemos ao milagre das horas.

19.12.24

James e o dialeto do Mississípi

O problema não está em James, esse erudito secreto e algo esquivo, que parece aceitar de antemão a minha dificuldade em decifrá-lo. Não, o problema está no adolescente que fui, aquele que, aos quinze anos, leu “As Aventuras de Huckleberry Finn” com a despreocupação de quem atravessa um campo de girassóis: sem mapa, sem pressa, e com a certeza de que nenhum dialeto podia ser mais complicado do que regressar a casa à hora estipulada pela autoridade materna. Huck, nas mãos de Mark Twain, era um guia benevolente, sem pretensões pedagógicas, que me deixava correr descalço pelo Mississípi, ignorando cada “y’all” e “ain’t” como se fossem apenas música de fundo — até porque estavam traduzidas nalguma improvável alternativa portuguesa.
Já o “James” de Percival Everett, implacável, exige mais. Exige que eu pare, que leia em voz alta, que procure no YouTube tutoriais de sotaques sulistas para compreender diálogos que me soam a poesia críptica. Onde Huck sorria das minhas falhas, James levanta uma sobrancelha crítica. Talvez seja isso que me atormenta: não o dialeto em si, mas o espelho que Everett segura, mostrando-me que, afinal, já não sou o leitor adolescente que flutuava pelo Mississípi, mas um adulto que tropeça em cada frase como quem tenta dançar sapateado descalço. Entre o Mississípi de Twain e o de Everett, descubro que há duas formas de viajar: uma é deixar-me levar pela corrente, outra é enfrentar os redemoinhos do idioma — e, com sorte, não me afogar em cada frase.

18.12.24

O Pai e o ídolo futuro

O rapaz desfilava pela loja com a solenidade de um general em vésperas de batalha. Os ténis, escolhidos com o rigor de um tratado diplomático, prometiam conquistas sem precedentes no recreio.
O Pai, afogado entre etiquetas de preços e promessas de resistência, virou-se para o empregado com um sorriso cansado: «E espatifam-se logo ao primeiro pontapé, não é?» A resposta veio acompanhada de um encolher de ombros eloquente, que dizia mais do que qualquer discurso ensaiado.
Pagou, claro. Entre a engenharia do calçado e a vontade de um miúdo, sabia bem qual cederia primeiro – e não era o entusiasmo.

17.12.24

A semana antes da semana de Natal

Há uma quietude peculiar na semana antes da semana de Natal. Não é um silêncio de paz ou introspeção, mas uma espécie de suspensão inquieta, como o momento em que a água ferve mas ainda não transbordou. As ruas, demasiado iluminadas para este frio acinzentado, parecem repelir as nuvens como se o excesso de claridade pudesse compensar o vazio deixado por algo que ninguém sabe nomear.
As pessoas — apressadas, mas com a descoordenação de quem corre sem saber ao certo para onde — vagueiam entre montras que prometem «o presente ideal» e bancas de mercado que misturam recordações genéricas com descontos que ofendem a palavra «promoção». A maioria evita olhar para os outros; os sorrisos já foram gastos no início do mês, junto com a paciência, e o cansaço começa a substituir qualquer laivo de boa vontade.
Os cafés lotam-se de chávenas que aquecem mãos, mas não conversas. Os menus sazonais, com nomes extravagantes e temperos anacrónicos, oferecem conforto de conveniência — um latte com sabor a açúcar queimado que, por três euros e vinte, promete ser «a tua pausa do stress». Uma pausa que dura o tempo de uma fila para o próximo compromisso.
E no entanto, apesar de toda esta pressa, esta é uma semana interina, um interlúdio, um ensaio geral inacabado. As prendas compradas ainda não serão entregues, as árvores enfeitadas ainda não serão admiradas, e as promessas de reencontros ainda não se cumprirão. Apenas os hipermercados prosperam, com corredores ocupados por gente que carrega sacos como penitência e procura aquele item esquecido — uma travessa, talvez, ou as especiarias para o tempero que ninguém vai notar.
Por cima de tudo isto, há um coro constante que atravessa altifalantes, como se alguém tentasse criar uma unidade que já não existe. «It’s beginning to look a lot like Christmas», canta uma voz suave, enquanto as pessoas, paradas nas passadeiras ou nas filas de trânsito, ajustam os casacos e fitam o vazio.
E então, tal como veio, passa, levando consigo um peso imperceptível. Na semana seguinte, quando o ruído aumentar, todos dirão que esta era a verdadeira calma, sem nunca se lembrarem como, na verdade, era apenas um vazio com guirlandas.

16.12.24

Os coentros e o drama do prato perfeito

Há quem diga que os coentros são a alma da cozinha mediterrânica; outros, num exagero digno de tragédia grega, chamam-lhes ervas subversivas. Mas quando o assunto é uma honesta raia com batata cozida, esta erva aromática não é apenas um detalhe botânico — é o argumento principal, o golpe de génio que separa uma iguaria respeitável de um prato sem alma.
Imagine-se a cena: a raia, em toda a sua modéstia gelatinosa, repousa no centro da travessa. Ao lado, as batatas, humildes operárias da mesa portuguesa, já cozidas, descascadas e sem grandes ambições na vida. Tudo parece bem. Até que alguém, numa ousadia inexplicável, decide ignorar o ramo de coentros. O resultado? Um prato que evoca mais um vazio clínico do que a generosidade de uma mesa familiar.
Leitora, esta erva rebelde não é um enfeite. Não está ali para fazer número. É o poeta maldito da travessa, o Rimbaud da cozinha. Na sua frescura, traz o campo, o verde que corta o peso do mar e do amido, o contraste que transforma um alimento humilde numa experiência transcendental.
E quem a despreza? Há sempre um comensal na mesa que reclama: «Coentros? Nem pensar, parecem-me sempre um erro de jardinagem no prato.» Pois que fique com a refeição a saber a nada, mergulhado num tédio culinário onde nem o azeite tem vontade de brilhar. Esses são os mesmos que acham que a vida é melhor sem riscos, sem emoção, e que pão com manteiga já é aventura suficiente para o pequeno-almoço.
Portanto, na próxima vez que vir alguém hesitar diante de um molho de coentros, lembre-se: é o mesmo que hesitar perante a felicidade. Sem eles, a raia é apenas um peixe à deriva na travessa; com eles, é uma ode ao mar e à terra num só golpe.
Esta erva aromática não divide opiniões. Divide mundos. E no meu, onde a raia é rainha, o reino é deles.

15.12.24

Coda

A Senhora que dormiu o concerto todo, escapuliu-se mesmo antes dos encores.