9.12.24

Rigor conjugal

Na mesa ao lado, a Dona diz: «Eu explico, mas tu és sempre lento a pensar», com a precisão de quem já disse aquilo mil vezes mais IVA. O marido, protegido pelo jornal, nem pisca – talvez por prudência, talvez por treino. Ela continua a diatribe, numa cadência metódica que faria inveja a um metrónomo, enquanto ele vira a página com a lentidão de um filósofo em contemplação. Quando saem, a Dona ajeita a mala e repete: «Ainda queres que explique outra vez?» Ele, sem levantar o olhar, solta um murmúrio quase impercetível: «Acho que já percebi tudo há uns vinte anos.»

8 comentários:

  1. Com esse nível de saturação pergunto-me como serão os próximos vinte.

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    1. Pergunta pertinente, CC. Talvez os próximos vinte sejam iguais aos anteriores –- ou, quem sabe, a maior dependência mude a natureza da relação. Mas alguém merecerá vida assim? Não creio.

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  2. Julgo que o hábito é capaz de desgastar bastante o respeito pelo outro. O que não é regra. Mas é ainda mais lamentável se acontece em público.

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    1. Sem dúvida, o hábito pode ser um teste ao respeito, mas, no público ou no privado, quem sabe se a Dona não encontra alguma satisfação na sua “cadência metódica”? Talvez haja ali um equilíbrio que só os envolvidos compreendem.

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  3. Não se sabe se a Dona tem vícios privados, mas virtudes públicas não as demonstra. A mulher por natureza gosta de ralhar, marido, filhos, vai tudo a eito e por regra, não o faz em voz baixa, nem em tom cordato, senão perde o efeito. O homem, sendo mais pacato ou menos desenvolto de língua, vai ouvindo, ouvindo, ouvindo e se ao fim de tanto aguentar, levantar um dedo, claramente, perde a razão, mas é quadro que, creio, aconteça muito.

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    1. Interessante observação, Joaquim. Essa dinâmica é tão antiga quanto o próprio casamento, um jogo de forças onde a paciência de um faz contrapeso ao ímpeto do outro. Mas, diga-se, há quem prefira o silêncio filosófico ao duelo verbal. Estratégia ou pura rendição?

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  4. Um quadro triste, de um casal que também o deve ser.

    Beijinhos, caro Xil.

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    1. Concordo que o cenário é melancólico, mas talvez a tristeza seja apenas aparente. Há algo de teatral no quotidiano conjugal – e no teatro, como na vida, nem sempre se distingue a tragédia da comédia.

      Beijinhos, Maria Eu

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