13.12.24

Cabo das Tormentas

Há algo deliciosamente teatral no modo como Lisboa enfrenta os nove graus. Nove! Um número que noutras latitudes seria recebido com alívio, quiçá entusiasmo, mas que aqui assume proporções apocalípticas. À primeira brisa mais agreste, desata uma coreografia coletiva de casacos que não viram a luz do dia desde o último solstício de inverno, cachecóis que mais parecem mantas e luvas que, com um leve exagero, poderiam pertencer a uma expedição polar.
No metro, os semblantes são de sofrimento. Ouvem-se sussurros de que frio, meu Deus, que frio como se cada grau a menos face à temperatura primaveril do fenecido outono fosse uma afronta pessoal. Alguém arrisca dizer que isto é como viver no Alasca, e ninguém se ri. Estão todos ocupados a respirar pelas golas dos casacos, numa tentativa desesperada de criar o seu próprio microclima.
As cafetarias tornam-se santuários improvisados, onde chás e galões são empunhados como armas contra o inverno apocalíptico. As cadeiras tremem sob o peso dos casacos em camadas, empilhados como se cada cliente tivesse saído de casa preparado para um exílio na Sibéria.
Curioso, é claro, que neste mesmo cenário há sempre um ou dois excêntricos que, como personagens saídas de um romance beatnick, decidem apresentar-se de t-shirt. São olhados com uma mistura de inveja e repulsa, como quem desafia uma ordem natural inquestionável.
E no entanto, há algo reconfortante nesta tragédia coletiva. Lisboa, com os seus nove graus de dramatismo, é também um palco onde, por breves dias, todos partilham a mesma queixa. No fundo, não é do frio que falamos, mas de uma saudade térmica qualquer, uma vontade de nos unirmos em torno de algo tão intangível como o vento gelado que desce a Avenida da Liberdade.
Afinal, quem precisa do Cabo das Tormentas quando se tem a criatividade lisboeta para transformar nove graus numa epopeia?

1 comentário:

  1. O problema é que as pessoas já saem com frio de casa, porque tirando as modernas que já estão equipadas com AC, as outras estão mal preparadas para temperaturas baixas, com janelas e portas a deixarem passar o ar e o vento. A eficiência energética é só para o bolso de alguns com benefícios fiscais a entrarem só depois da despesa efetuada.
    Para além de sermos um povo de brandos costumes, também estamos habituados a climas temperados, o que por si só causa reação adversa a tudo que não seja morno, morninho.

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