15.9.24

Espiritualidade

Religião e espiritualidade, embora frequentemente confundidas, ocupam lugares distintos na obra de Saramago. Na sua visão, a religião institucionalizada surge como uma ferramenta de poder, um mecanismo de controlo sobre o povo, onde o dogma aniquila a genuína busca espiritual. A sua crítica à Igreja, evidente em “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” e “Caim”, não é uma negação da fé, mas uma desconstrução dos alicerces autoritários que, segundo o autor, cerceiam a liberdade e o pensamento crítico.

A espiritualidade, para Saramago, desponta na intimidade da reflexão pessoal, distante das formalidades e dos intermediários. É uma viagem solitária, interior, onde o indivíduo procura o transcendente não em templos ou rituais, mas no constante questionamento de si e do mundo que o rodeia. Este conceito de espiritualidade não se enraíza nas respostas prontas e imutáveis, mas sim na inquietude, na necessidade de interrogar e duvidar. Podemos, assim, identificar na sua obra um tema de fundo: a tensão entre o poder institucionalizado da religião e a liberdade espiritual, que desafia as amarras dogmáticas e valoriza a autonomia individual. Este tema ressoa também nas obras de Gabriel García Márquez e Juan Rulfo, onde a religião é frequentemente retratada como uma estrutura opressiva, enquanto a espiritualidade emerge como uma busca pessoal e introspectiva.

Quando Saramago humaniza o divino, como em “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, onde Jesus é retratado como um homem assombrado pelas suas dúvidas e fragilidades, ou em “Caim”, onde o protagonista desafia um Deus autoritário e impiedoso, o escritor endereça-nos um convite a reconhecermos a vulnerabilidade e a imperfeição como elementos centrais da experiência humana. Estes personagens não se submetem; questionam, resistem, recusam aceitar o que lhes é imposto. Borges, no seu poema “Ragnarök” — que Saramago, admirador do argentino, conheceria — corporizou até tal ideia de forma mais visceral: “Todo empezó por la sospecha (tal vez exagerada) de que los Dioses no sabían hablar. (…) Bruscamente sentimos que jugaban su última carta, que eran taimados, ignorantes y crueles como viejos animales de presa y que, si nos dejábamos ganar por el miedo o la lástima, acabarían por destruirnos.”

A espiritualidade que Saramago propõe é, em última instância, uma forma de estar no mundo — uma abordagem que privilegia a consciência crítica e o respeito pela complexidade humana. Em contraste com as religiões, que se apoiam em dogmas e regras rígidas, a espiritualidade aqui é uma procura incessante, sem garantia de respostas finais, mas rica em significados. Este constante desafio às certezas não é apenas um exercício literário, mas um tema de fundo que percorre a sua obra, diria até central, convidando-nos a reconsiderar as nossas próprias noções de fé e transcendência.

[Reflexão dominical a propósito do tema discutido alguns textos abaixo.]

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