14.9.24

Os olhos de Isabel


Após Isabel da Nóbrega ter terminado o relacionamento com João Gaspar Simões, passando a viver com José Saramago (que era dezanove anos mais novo que Simões), o despeitado biógrafo de Pessoa publicou o romance de vingança “As Mãos e as Luvas (Retrato em Corpo Inteiro)” onde descreve Isabel (ali chamada Tininha) como uma “espécie de Madame Bovary”, uma “burguesa diletante e com aspirações à escrita”. 

Mas a raiva de homem abandonado, o motivo, afinal do livro, não lhe apagou da mente o olhar de Isabel, que seria também depois, a origem do olhar de Blimunda:

“Tininha, a bem dizer, nada tinha de impecavelmente bonito, à exceção de um ser – os olhos. Sim, lá os olhos eram sensacionais. [...] O resto, no entanto, valia pouco, muito pouco. No entanto, por pouco que valesse, ela se encarregava de o valorizar, sensacionalizando-o. Continuava a exercitar a mesma tática, convencida de que podia envelhecer nela, tudo, menos os olhos, a tal 'jóia' que guardava para as grandes ocasiões. [...] Querem que lhes conte o que realmente pensei quando pela primeira vez vi Tininha e a sua extraordinária peça anatómica? Que os seus olhos não eram realmente órgãos de um corpo do qual faziam parte inseparável? Pensei estar na presença de dois insetos exóticos, tropicais, mistos de pirilampos e de borboletas, mas que tinham a cintilação quase lasciva e a escamosa policromia destas. Direi que eram dois grandes ateros – melhor: lepidópteros – lepidópteros gigantes, espécies raras de uma coleção que o entomologista não conseguiria neutralizar, e que, mesmo expostas ao ambiente, continuassem a agir: a viver, a fascinar, a seduzir aqueles que olhavam para elas.”

A seduzir, como anos mais tarde, ou séculos antes, a Baltasar Mateus, que se perderia, também, sem salvaguarda, por eles.

“Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas olha fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra.”