10.1.25

A ciência do travão

Durante anos, considerei-me um condutor exemplar, uma espécie de maestro das estradas, regendo o trânsito com movimentos precisos do acelerador e uma delicadeza quase artística no travão. A cada curva, imaginava os aplausos silenciosos dos outros condutores, testemunhas da minha perícia. Essa ilusão, no entanto, desmoronou no dia em que a App do meu carro decidiu quantificar a minha habilidade ao volante. Pontuação por travagens, acelerações, velocidade constante. Descobri, com a frieza dos algoritmos, que o meu virtuosismo não passava de uma melodia desafinada.

A travagem brusca ao evitar um peão aventureiro? Menos cinco pontos. A aceleração necessária para não ser engolido por um autocarro que considerou o meu espaço como extensão natural do seu? Outro desconto. E que dizer da velocidade constante, um conceito aparentemente banal, mas que, no trânsito de Lisboa, se revela tão utópico quanto encontrar estacionamento gratuito em Campo de Ourique? A App exige que eu mantenha a estabilidade, como se as colinas e os cruzamentos lisboetas fossem linhas rectas ideais de um manual alemão, e não o caos topográfico que conhecemos.

O pior, contudo, não é o julgamento implacável da App, mas a sua indiferença ao contexto. Não há botão para justificar o pequeno desvio necessário para evitar uma mota estacionada em plena faixa, nem para explicar que o salto abrupto no acelerador foi o equivalente urbano de escapar a um javali na autoestrada, mas em versão carrinha de entregas desgovernada. Agora, cada viagem termina não com o sentimento de dever cumprido, mas com uma pontuação sarcástica e uma sugestão de «melhoria». Afinal, o que começou como uma avaliação da minha condução tornou-se numa metáfora perfeita para a vida moderna: estamos sempre a ser avaliados, nunca suficientemente bons — nem sequer para um algoritmo que, de certeza, foi programado por alguém que, ao contrário da canoa, não sabe quantas docas tem Lisboa, ainda menos quantas muralhas ela tem.