14.1.25

Pequeno tratado sobre o retrocesso civilizacional

Há uns dias, dei por mim a questionar as virtudes da vida moderna, talvez porque o meu telefone esperto me alertou para uma reunião que esqueci, enquanto tentava carregar a bateria a cinco por cento com um cabo que só funciona em posição de yoga. Foi nesse momento de epifania – ou cansaço extremo – que decidi fazer o impensável: regredir. Comecei com uma agenda em papel, que me pareceu o equivalente existencial de plantar uma árvore. É bonita, cheira a tinta fresca e, ao contrário do calendário digital, não se apaga sozinha.

Claro que uma agenda em papel não podia andar sozinha. Repesquei as minhas canetas de tinta permanente, incluindo uma que, na faculdade, me fazia sentir o herdeiro espiritual dos profícuos escritores dos tempos pré-teclas. Enchi-as com uma cerimónia quase litúrgica, só para descobrir que a tinta tem uma vontade própria e acha que “manchar” é um verbo subvalorizado. Deixei marcas de azul pela mesa e, por um instante, considerei que retomar os hábitos digitais talvez não fosse a pior das opções. Mas haja longanimidade, diria Camilo! Ainda assim, houve algo poético naquele momento de fracasso: a escrita, afinal, é também sobre deixar marcas – mesmo que sejam das que nenhum detergente soluciona.

A verdadeira revolução estava, contudo, guardada para o final: recuperar o meu Nokia, um objeto que, no seu tempo, sobreviveu a quedas, cafés derramados e até à inveja dos amigos. Lembrei-me de que tinha um toque polifónico do Crazy Frog e senti um misto de nostalgia e vergonha. Liguei-o à corrente, esperei umas horas e, quando a luz verde acendeu, senti-me invencível. Não me importei com a ausência de internetes, notificações ou emojis. Ali estava eu, com um dispositivo cuja única utilidade era… telefonar. No fundo, é uma espécie de minimalismo tecnológico. Ou masoquismo ligeiro. Seja como for, aqui estou, à espera que me liguem – ou que a civilização volte a precisar de telefones indestrutíveis.