26.10.25

Um epicurista

O comensal da mesa ao lado acompanha o bacalhau à Brás, servido em tacho de cobre, com uma meia de leite, servida em porcelana de Ílhavo.

Saúdo a elegância dos materiais; abstenho-me, leitora, se me abstenho, de comentar a conjugação dos sabores.

19.10.25

O mandato

Ao motorizado entregador de comida, de uma daquelas inúmeras plataformas com nomes como Uber Eats ou Glovo ou Bolt, que vinha em contramão numa rua estreita algures entre o Largo de Camões e São Bento, numa povoada tarde de sábado, condutor esse que pareceu pedir desculpas por via de alvíssimo e contrito sorriso, face ao meu olhar que deve ter aparecido, do outro lado do pára-brisas, como de surpresa combinada com pânico, a esse entregador, digo, não vociferei as palavras inspiradas pela situação, em colorido vernáculo de Bocage, porque aprender a conduzir em Lisboa é tarefa para uma vida e não se cumpre em dois ou três anos, porque as escolas de condução em Karachi têm decerto padrões diversos dos das congéneres em Lisboa e, em especial, porque às quatro da tarde já o almoço ia fora de tempo, um portador de nutrição tem praticamente o mandato de um bombeiro, e em tais circunstâncias, o que é que não é justificável aos olhos de qualquer divindade, seja das de cá ou das de lá?

21.9.25

Mesteres

Em boa verdade, é o médico que me roga que regresse, Daqui a seis meses, quero vê-lo de novo, em tom que não deixa margem para duvidar, quem tem o principal interesse no reencontro. Quando cruzo a porta, as primeiras novidades que me dá são dos avanços que ele fez em áreas do meu mester, aqueles que para mim são obrigação e para ele são devoção. A minha profissão é o hobby dele, não sendo, no entanto, a inversa verdadeira. Sou eu a dar-lhe conselhos, diagnósticos, sugestões para as experiências seguintes: tudo o que faria desta uma consulta normal, se os lugares fossem trocados e os temas de uma consulta normal fossem estes. Ele, com a atenção que todos gostaríamos de ter de um esculápio, bebe cada palavra, agradece profusamente. A rotina que lá me leva é secundária, reduzida aos dois minutos finais, enquanto apertamos a mão e a porta se abre. O primeiro compromisso com que fico, assim, na agenda para dois mil e vinte e seis, são os vinte minutos semestrais, em que me atualizarei sobre os avanços do meu médico, no meu ofício, o mesmo que me permite pagar as consultas que me faz, ou lhe faço a ele — o que for válido consoante o contexto, leitora.

21.8.25

Da arte

Na mesa ao lado, na cafeteria do museu, os pais do pequeno e hiperativo infante, criaram, cada um deles, o seu momento de paz, pintando — eles mesmos — com a meticulosidade de um Monet, os livros de colorir que se destinariam ao pequeno desordeiro, caso ele tivesse a paciência, a intenção ou, simplesmente, o desespero, dos exauridos progenitores.

8.8.25

Travessia

A água é uma só coisa, e uma só coisa por milhas.

A água é uma só coisa, e torna esta ponte,

Erguida sobre ela, noutra. Caminha-a

Cedo, e volta a caminhá-la quando o dia esmorece — todos

Se erguem apenas para reencontrar o descanso.


Trabalhamos, começamos de um lado do dia

Como o único sol de um planeta, olhos fixos

Até que a chama desça. A chama desce. Graças a Deus

Sou diferente. Calculei e pesei. Não atravesso

Para voltar. Estou firme

Numa coisa vasta. Estende-se

Tão longa como o mar. Sou mais do que um vencedor, maior

Que a bravura. Não marcho. Sou o que salta.


[Jericho Brown, versão de x. Poema apresentado nos comentários num post abaixo.]

27.7.25

O mundo ao contrário

Menina Shakti agarra-me os tornozelos e puxa-me as pernas -- o com elas o corpo todo -- para mais perto do tecto. Não que eu estivesse a fazer batota, ou pouco concentrado na prática, mas no quotidiano sou mais adepto de ter a cabeça acima dos ombros e não abaixo deles. Os pés lá em cima, acontece-me com menos frequência e, em geral, só aqui, na aula de ioga. Tirando isso, e que me recorde, apenas aquele tombo aparatoso, faz agora vários anos, na calçada polidíssima, reluzente, do verão de uma da sete colinas. Ver o mundo ao contrário, mais do que uma ciência, é uma arte: não pode ser deixado aos acasos e acidentes inestéticos e dolorosos de um amador. Mais uns meses, leitora, e serei especialista em estar de cabeça no chão. De cabeça no ar, prática não me falta. Para mudar de hábitos, aqui como em tudo, o melhor é começar por baixo, que é onde as certezas costumam perder a compostura.